terça-feira, 18 de setembro de 2007

A derradeira batalha

Vão vagos pela estrada,
Cantando sem razão
A última esp’rança dada
À última ilusão.
Não significam nada.
Mimos e bobos são.

Vão juntos e diversos
Sob um luar de ver,
Em que sonhos imersos
Nem saberão dizer,
E cantam aqueles versos
Que lembram sem querer.

Pajens de um morto mito,
Tão líricos!, tão sós!,
Não têm na voz um grito,
Mal têm a própria voz;
E ignora-os o infinito
Que nos ignora a nós.

Fernando Pessoa


Vão vagos pela estrada, sem rumo certo, deixando-se conduzir pela brisa suave do destino. Não sabem o que querem, não projectam o futuro. Fruem o presente, sem preocupações nem outros deveres que não estudar e apreciar a adolescência. Vivem recatados nas suas casas, embrenhados na esfera social a que pertencem e que lhes transmite a protecção e segurança de um ambiente explorado e acolhedor. Contudo, conhecem muito pouco do verdadeiro mundo, aquele em que as suas irresponsabilidades (mesmo que fortuitas) poderiam marcar de forma indelével a sua vida. De repente, sem qualquer preparação prévia, são lançados no mundo real, exigindo-se discernimento e sensatez para a edificação de um projecto de vida. Abandonam as caras conhecidas, a escola tutelar, os professores atentos e disponíveis. Põem de lado as amizades que demoraram anos a aprimorar e aperfeiçoar e vêem-se obrigados a desocupar o confortável mundo conhecido. São diversos e sós, lançados sem piedade num mundo que não tem tempo nem disposição para amparar as quedas. Não significam nada e a vida lírica que levavam é subitamente repudiada pela sociedade, afastando-os das suas ilusões e esperanças. Apesar de tudo, vão juntos. Sem voz, sem esperança, apenas sonhando. Porque no terreno do sonho nem a sociedade pode impor a sua autoridade. Vão juntos e, embora ignorados pelo infinito, sabem que estão prestes a enfrentar a derradeira batalha. Nessa batalha não ganham os que estudam mais ou que possuem mais sabedoria. Vencem apenas aqueles que têm maior capacidade de sonhar e de investir na concretização dos seus projectos. É a derradeira batalha pela felicidade que os jovens se vêm obrigados a iniciar. Uma batalha para a qual não têm maturidade suficiente e onde cada um se significa apenas a si próprio. Uma batalha que talvez lhes permita alcançar uma identidade singular e um sentido para a sua existência. Ou talvez não.

Escrevi este texto o ano passado, enquanto esperava ansiosamente pela saída do resultado das colocações na faculdade. Felizmente, foi-me concedida a oportunidade de viver o sonho pelo qual lutei no secundário. Só espero nunca defraudar as expectativas de quem espera tanto de mim...
O meu pensamento vai hoje para todos aqueles que alcançaram finalmente a meta a que aspiraram. Que a nova etapa que agora iniciam lhes traga a serenidade, alegria e maturidade para enfrentar os desafios que já espreitam. Aos que ainda se debatem com as dificuldades, desejo sinceramente que o seu sonho nunca esmoreça pela frustração ou cansaço!

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

É o retorno

Começou. Ainda que a meio gás. A partir de hoje o 704 pode contar com mais uma passageira assídua... É o regresso à minha segunda casa, à faculdade que tão calorosamente me acolheu no ano passado. Já sentia saudades dos corredores labirínticos, dos elevadores decrépitos que encravam teimosamente entre pisos, do silêncio avassalador da biblioteca, do odor do teatro anatómico (!), da alegria que impera no salão, dos sofás, dos almoços no 02 com a ementa de sempre. Mas do que sentia mais falta era dos amigos, das piadas disparatadas depois de uma aula complicada, das partidas animadas de matrecos onde aproveitávamos para descarregar as frustrações e o cansaço de muitas horas de estudo. Ansiava por aquelas conversas nos intervalos em que se discutia tudo e nada, apenas pelo prazer de partilhar à socapa mais uns minutos, mais um sorriso, mais um silêncio compreensivo, mais um problema. E sentia vontade de novo (re)descobrir os mistérios que o nosso corpo encerra, lentamente tomando consciência de como tudo está tão bem orquestrado e programado. Os livros a estrear, os cadernos ainda em branco, os apontamentos, os anfiteatros, os laboratórios, os professores... enfim, tudo isso constituía uma lacuna enorme porque o estudo é parte integrante de quem sou e de quem vou ser. "Primum non nocere". Primeiro, não fazer mal. O princípio hipocrático recorda-me que eu devo aproveitar a oportunidade de estudar na FMUP para crescer como pessoa e para me tornar a melhor médica possível até porque uma é indissociável da outra. Só assim poderei, no futuro, servir e acolher bem a sociedade que também um dia me recebeu, tentando tornar mais felizes não só aqueles que me procuram, mas também, aqueles que me têm acompanhado corajosa e pacientemente em todas as encruzilhadas da vida.

"There is joy in work. There is no happiness except in the realization that we have accomplished something." Henry Ford

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Memórias

Este texto é dedicado à minha avó Júlia, ao meu avô Manel e à minha avó Emília, que ainda permanecem junto de mim, e ao meu avô Quim cujo coração levou-o pouco depois de eu ter nascido, privando-me de um avô extremoso, terno e amorável.

Veio-me hoje a nostalgia de um tempo muito feliz, (quase) esquecido num canto sombrio da minha memória. Depois de livre do pó do passado, esse tempo revelou-se para mim com um brilho que eu julgava já não ser possível de recuperar. Não sei o que desencadeou esta minha necessidade de percorrer de novo os caminhos tortuosos mas infinitamente felizes da minha infância... ou talvez saiba mas me custe a admitir. Um dia destes, dei por mim a olhar para os meus avós, pensando como já estavam velhinhos e cansados e como tinha saudades daquelas manhãs em que a minha avó Júlia jogava futebol comigo, daquelas tardes em que o meu avô Manel me iniciava nesse jogo viciante que era a bisca ou daquelas brincadeiras com a minha avó Emília que não se importava quando eu fazia batota no Monopoly para ganhar. Os meus avós personificavam todas as personagens do meu mundo de fantasia... brincavam às casinhas, aos supermercados e aos médicos com uma paciência infinita, sem olharem para o relógio nem para a desarrumação que reinava por instantes naquele quarto. Acarinhavam-me, deixavam-me comer guloseimas e velavam o meu sono quando estava doente ou tinha medo. Agora, ao vê-los, reconheço que o tempo passou depressa, levando consigo não só a saúde mas também os seus netinhos... Dessas crianças de dez anos não sobra nenhuma que preencha o vazio de uma tarde com o seu riso ou com uma asneira inconsequente. Contudo, os meus avós não estão sozinhos... sabem-se acompanhados por filhos e netos que os amam mas que vivem apressados o quotidiano, sabendo que o futuro não espera por eles. O ritmo é diferente. Para os meus avós, cada dia é uma enormidade de segundos preenchidos por um passeio, por um programa na televisão, por um croché, por uma sesta, por um terço, por uma consulta no centro de saúde, repetindo-se o mesmo ciclo dia após dia. Para mim e para os meus pais, cada dia é uma corrida contra o tempo, na ânsia de concretizar todos os projectos de vida acalentados ao longo do percurso. Por isso é que julgo compreender quando os meus avós se sentem sozinhos mesmo com a nossa presença a alguns metros de distância. E por isso também é que tenho um enorme orgulho neles. Todos os dias se deixam conduzir com alegria pelo lento passar do tempo, sobrevivendo às suas partidas e lutando por uma vida que sabem que também pertence àqueles por quem são amados. Cada ruga, cada dor nas articulações e cada cabelo grisalho não é apenas sinal do envelhecer mas é sobretudo a memória viva de todos os sacríficos que os meus avós fizeram para conseguir que os filhos estudassem e tivessem as ferramentas para ser felizes. Os meus avós abandonaram as suas aldeias à procura de trabalho que lhes permitisse subsistir e prosperar numa terra que não era a deles. Procuraram dar aos filhos aquilo que a eles tinha sido negado pelas dificuldades de uma época conturbada em Portugal. Mesmo não sendo licenciados, souberam utilizar a sua literacia rudimentar e o seu saber empírico para tornar a vida dos que os rodeavam mais feliz. É impossível transmitir por palavras a gratidão e amor que sinto por estes anciãos que ainda conservam no olhar a mesma juventude de outrora. Da próxima vez que os visitar não os encararei mais como avós velhinhos e cansados mas recordarei com eles as proezas passadas e verei de novo, diante de mim, a avó "futebolista", o avô "das cartas" e a avó "cúmplice da batota".

"When grace is joined with wrinkles, it is adorable. There is an unspeakable dawn in happy old age." Victor Hugo