terça-feira, 4 de setembro de 2007

Memórias

Este texto é dedicado à minha avó Júlia, ao meu avô Manel e à minha avó Emília, que ainda permanecem junto de mim, e ao meu avô Quim cujo coração levou-o pouco depois de eu ter nascido, privando-me de um avô extremoso, terno e amorável.

Veio-me hoje a nostalgia de um tempo muito feliz, (quase) esquecido num canto sombrio da minha memória. Depois de livre do pó do passado, esse tempo revelou-se para mim com um brilho que eu julgava já não ser possível de recuperar. Não sei o que desencadeou esta minha necessidade de percorrer de novo os caminhos tortuosos mas infinitamente felizes da minha infância... ou talvez saiba mas me custe a admitir. Um dia destes, dei por mim a olhar para os meus avós, pensando como já estavam velhinhos e cansados e como tinha saudades daquelas manhãs em que a minha avó Júlia jogava futebol comigo, daquelas tardes em que o meu avô Manel me iniciava nesse jogo viciante que era a bisca ou daquelas brincadeiras com a minha avó Emília que não se importava quando eu fazia batota no Monopoly para ganhar. Os meus avós personificavam todas as personagens do meu mundo de fantasia... brincavam às casinhas, aos supermercados e aos médicos com uma paciência infinita, sem olharem para o relógio nem para a desarrumação que reinava por instantes naquele quarto. Acarinhavam-me, deixavam-me comer guloseimas e velavam o meu sono quando estava doente ou tinha medo. Agora, ao vê-los, reconheço que o tempo passou depressa, levando consigo não só a saúde mas também os seus netinhos... Dessas crianças de dez anos não sobra nenhuma que preencha o vazio de uma tarde com o seu riso ou com uma asneira inconsequente. Contudo, os meus avós não estão sozinhos... sabem-se acompanhados por filhos e netos que os amam mas que vivem apressados o quotidiano, sabendo que o futuro não espera por eles. O ritmo é diferente. Para os meus avós, cada dia é uma enormidade de segundos preenchidos por um passeio, por um programa na televisão, por um croché, por uma sesta, por um terço, por uma consulta no centro de saúde, repetindo-se o mesmo ciclo dia após dia. Para mim e para os meus pais, cada dia é uma corrida contra o tempo, na ânsia de concretizar todos os projectos de vida acalentados ao longo do percurso. Por isso é que julgo compreender quando os meus avós se sentem sozinhos mesmo com a nossa presença a alguns metros de distância. E por isso também é que tenho um enorme orgulho neles. Todos os dias se deixam conduzir com alegria pelo lento passar do tempo, sobrevivendo às suas partidas e lutando por uma vida que sabem que também pertence àqueles por quem são amados. Cada ruga, cada dor nas articulações e cada cabelo grisalho não é apenas sinal do envelhecer mas é sobretudo a memória viva de todos os sacríficos que os meus avós fizeram para conseguir que os filhos estudassem e tivessem as ferramentas para ser felizes. Os meus avós abandonaram as suas aldeias à procura de trabalho que lhes permitisse subsistir e prosperar numa terra que não era a deles. Procuraram dar aos filhos aquilo que a eles tinha sido negado pelas dificuldades de uma época conturbada em Portugal. Mesmo não sendo licenciados, souberam utilizar a sua literacia rudimentar e o seu saber empírico para tornar a vida dos que os rodeavam mais feliz. É impossível transmitir por palavras a gratidão e amor que sinto por estes anciãos que ainda conservam no olhar a mesma juventude de outrora. Da próxima vez que os visitar não os encararei mais como avós velhinhos e cansados mas recordarei com eles as proezas passadas e verei de novo, diante de mim, a avó "futebolista", o avô "das cartas" e a avó "cúmplice da batota".

"When grace is joined with wrinkles, it is adorable. There is an unspeakable dawn in happy old age." Victor Hugo

1 comentário:

Anónimo disse...

"Primum non nocere"

*A simplicidade diz tudo =)
Lindo*****